06 abril 2007

HISTÓRIAS DE GUERRA I



“Não lavou, mas pensou. Caguei!!!”


Uma história nunca começa pelo meio ou antes não deveria começar. No meu caso, as histórias de guerra começaram de acordo com a recordação que no momento me veio à memória.

Vou agora tentar ordenar a cronologia dos acontecimentos.
A história que hoje conto foi cronologicamente vivida primeiro do que a da “Bajuda”.

Como diria um amigo meu, partindo do principio (sim porque partir do meio ou do fim, é batota), digo-vos que entrei p’rá guerra aí por volta das quatro da tarde de uma Segunda ou Terça-feira no início de Outubro de mil, novecentos e setenta e dois.

Cheguei de comboio á estação de Tavira, dirigi-me para o quartel, onde a guerra já me esperava. Identificaram-me a mim e mais um grande número de futuros guerreiros entregando-nos os primeiros pertences de guerra, isto é, a farda e os talheres com um púcaro inox.
Digo-vos que fomos muito bem recebidos pelos nossos camaradas guerreiros já mais adiantados na guerra, de tal forma que nos alojaram em camaratas, ficando cada qual com a sua cama e armário.
Digo isto porque na guerra somos” todos por um e um por todos”, mas neste caso não, era cada um com a sua.
Extraordinário!
Á noite, pela madrugada, para nos incentivarem colocavam musica com mensagens muito sugestivas, informando-nos que se tivéssemos a sorte de morrer na guerra, seríamos condecorados a título póstumo.

Para que soubéssemos como seria a cerimónia, até a simulavam, mencionando os nossos nomes “fulano tal, condecorado a título póstumo, por morte em combate em Angola, ou na Guiné ou em…”, sendo incansavelmente repetida durante toda a noite, através da instalação sonora da caserna.
Os nossos camaradas eram tão atenciosos que à tarde, para que não tivéssemos de tomar banho e depois vir a constipar-nos, fechavam a água das casas de banho.
O problema é que ás vezes (sempre) chegavamos enlameados, com a barba por fazer. Mas com um pouco de imaginação enchíamos umas garrafinhas de água que guardávamos nos armários para poder fazer a barba e tomar um pequeno banho.
A seguir, na formatura, éramos inspeccionados minuciosamente só para se certificarem que a nossa imaginação funcionava. Caso não funcionasse teriamos o fim de semana à "benfica" isto é, escrito a encarnado.
Bom, tanta conversa e ainda nem sequer comecei a contar a história que hoje queria contar.
Então aqui vai.
Um dia quando saía do refeitório após o almoço, dirigi-me para uma bica que ficava mesmo em frente à saída, como aliás todos fazíamos a fim de lavar o púcaro e os talheres porque caso contrário arriscávamo-nos a chegar á caserna e não ter água para os lavar.
Muita gente à volta da bica quase todos quietos e calados, mas na minha santa ingenuidade nem percebi o que se estava a passar, lá fui empurrando os que se encontravam à minha frente até chegar à bica. Mal cheguei, estendi a mão com os talheres, mas de repente apercebi-me que exactamente no lado oposto estava o “oficial de dia” de papel e caneta em punho. Assim, olhei para ele e perguntei sem me atrever a mexer na água: “Posso?” e a resposta veio rápida, em forma de pergunta: “O número?” percebi então o que fazia ali o tenente com a caneta em punho e protestei: “Mas eu não lavei!” E a rápida resposta pergunta: -“Não lavou mas pensou. Caguei! O número?”
Lá tive de dar o número ganhando o meu primeiro fim-de-semana à “Benfica”! Isto é, passei-o fechado no quartel.
E sabem qual foi a música que mais escutei durante este fim-de-semana, especialmente no domingo? Foi esta: “Mamã, estou tão longe de ti! Não chores que o tempo passa depressa…”
E não é que passou mesmo!

Dois meses depois já eu ia a caminho do meu próximo destino Póvoa de Varzim e da minha próxima história de guerra.
Até lá. Até à Póvoa.
Ah, já me esquecia, foi bom jurar bandeira, aprender a ter respeito por aquele rectângulo bicolor que é o símbolo da nossa pátria.
Hoje, custa-me vê-la, esquecida, já em farrapos, pendurada por toda a parte, num desprezo total pelo seu significado e simbolismo.

Será que as pessoas que a mantêm nessas condições, sabem quantos morreram só para a defender?!
Bom, isto são guerras de outra história ou histórias de outra guerra.

Talvez um dia eu lhes conte a do "hastear da bandeira" que me ia lixando as férias na metrópole.

Conto quase de certeza que um dia contarei.

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